Não fazia muito tempo. Ela ainda tinha na pele a sensação do corpo dele. Ele estava em qualquer outro lugar, com certeza sozinho, porque não era desse mundo. Ela lembrava dele como se lembra de um filme que assistiu, um conto de fadas que ouviu a avó contar ou uma dessas histórias que a gente dá um leve sorriso no final, como que dizendo “que bom se fosse assim de verdade”. Não tinha lugar na casa. Já tinha tentado a cama, a cadeira de sol na varanda, a cozinha pequenina e aconchegante, o banheiro quentinho e cheiroso do banho que acabara de tomar, acabou no sofá. Esparramada. Até meio torta e desconfortável, procurando fazer algum músculo doer que não fosse o coração. Ligou a TV pra mergulhar a cabeça num seriado desses que tem tudo perfeito, até nas tragédias eles são perfeitos! É impressionante... O mocinho bonito não lembrava ele, mas ela ainda pensava no que ele estaria fazendo naquele momento. Provavelmente conversando um papo muito bom com alguém, regado a um bom vinho num restaurantezinho que poucos conhecem e com pouca luz. Uma amiga talvez? Poderia ser uma prima... Uma amiga de infância que ela adoraria conhecer! Quem será que é a vaca que está com ele agora? A mocinha dá um tapa na cara do mocinho, que não lembra ele em nada, e sai de cena segura de si, para aparecer choramingando numa cama enorme e fofa num quarto cheio de coisas caras de decoração. Ela olha de novo pro celular, pensa que ouviu um barulhinho, ou foi uma vibração, ela sempre deixa o celular pra vibrar e muitas vezes perde as ligações ou mensagens. Mas era só seu estômago, vibrando de ansiedade de uma coisa que ela nem sabia se existia mesmo. Foi pegar alguma coisa pra comer, pra fingir que o que o estômago tinha era fome e não saudades. Olhou no armário em cima da pia, nas prateleiras no canto da geladeira, nas gavetas ao lado do fogão. Nada. Ela tinha acabado de fazer compras, mas não tinha nada que tivesse o gosto dele. Preferiu tomar um chá, sem açúcar, pra protestar a insipidez do mundo. A música da vinheta do seriado tocou e ela sentou de novo, um pouco mais confortável, pra aguardar a outra séria que iria começar, um pouco mais disposta a fingir que aquilo ajudaria. Refrigerante Light e uma gostosa na praia; carrão que anda em qualquer terreno; mulher voadora que usa o perfume das nuvens; “escreva o que você mais gosta na Melani e no Jack e vá conhecer as estrelas em Los Angeles com direito a um acompanhante!” Não ofereceram a ele como prêmio praquela que conseguisse acreditar em amor nos dias de hoje. A TV hoje em dia não oferece nada de bom. Levantou impetuosa, com pose de decidida, e quem a assistisse acreditaria que ia sair de casa com um objetivo. Deu o primeiro passo e a pose escorregou pelo piso de madeira. Talvez fosse sua pressão, não estava se alimentando direito nos últimos dias, ou então fosse a pressão da vontade dele espremendo seus órgãos e sugando seu vigor. Sentiu algo úmido no rosto, passou as duas mãos na pele e tentou não se desesperar quando percebeu que seus olhos estavam derramando lágrimas de amor. Mas quem poderia diagnosticar que era disso que sofria? Uma doença tão rara, não podia acontecer com ela. Ainda mais nos dias de hoje! As pessoas fingem estar contaminadas pra conseguirem os poucos benefícios, que os mais velhos, que presenciaram a verdadeira epidemia, dizem que a doença traz. Ela não! Uma mulher jovem, moderna, independente. Não acreditava em contos de fadas há muito tempo! E pensar que a última coisa que ele lhe disse foi para que nunca deixasse de acreditar no que a fazia viver. Entregou-se ao chão frio. Abraçou as pernas e permitiu-se sentir tudo que fosse oferecido àquele momento. Fechou os olhos com força e obrigou o cérebro a mostrar todas as imagens dele que escondia atrás das desculpas e argumentos. Ela só queria ver seu rosto mais uma vez. Ela só queria se permitir acreditar por alguns segundos antes de voltar ao mundo cruel e real, que lhe chicotava verdades nas costas criando feridas incuráveis. Ela só queria acreditar com muita força que ele poderia existir, em algum lugar, levando sua vida numa boa e feliz como alguém desenvolvido e humano sabe fazer. E deixou seus músculos relaxarem naquelas imagens, deixou sua mente ser feliz com coisas que não podia tocar com as mãos. Deixou a felicidade invadi-la como uma tempestade que muda tudo. Sentindo-se confortável naquele chão duro, frio e solitário. Eram as alucinações da doença. Ele se importava. E era isso que tinha mudado tudo nela. Uma autenticidade que ela desconhecia nas plásticas dos rostos que encontrava todos os dias. Uma vontade de relacionar-se e idéias de mudar o mundo na cabeça coberta pelos cabelos mais lindos que ela já vira. Ele não podia ser deste mundo. Amava-a com a sinceridade de sua existência, mas ela não acreditava que ele era real. Ela sabia que ele devia ter outras mulheres pra se distrair. Sabia que ele navegava por sites pornôs atrás de loiras enquanto ela era morena. Sabia que devia distribuir suas atenções a menininhas encantadas com a vida bem sucedida e as idéias de um mundo melhor. Ela pensava que sabia de tudo. E por mais que ele insistisse em ser fiel e em não fazer coisas que pudessem magoá-la a este ponto, ela não conseguia acreditar, já estava magoada. Ela foi obrigada a desacreditar no amor. Foi obrigada por tantas coisas ruins do mundo a não crer mais que tudo isso de tão bom pudesse existir em um mesmo ser humano. Ela não acreditava em contos de fadas, por mais que estivesse jogada no chão do seu apartamento, esperando que o príncipe a resgatasse de seu calabouço emocional. Esperou até ele não vir, e levantou com a dor de mais uma chicotada. Lavou o rosto, e lá se iam mais algumas de suas esperanças e sonhos, pelo ralo abaixo. Será que dependia dela? Será que estava fadada a morrer com aquela doença horrível e tão gostosa? Será que ele estava pensando nela também? Será que amanhã acordaria viva? Talvez amanhã ele ligasse. Talvez amanhã ela ligasse. Ficou no escuro pensando em coisas horríveis que podia fazer para se convencer de que estava mesmo doente e que doença nenhuma serve para bem algum, e portanto, ela estava certa, ele era igual aos outros e nada de especial havia naquele conto besta que ela inventava na cabeça. Foi até a casa dele. No meio da noite. Louca para encontra-lo na cama com outra e todas as suas esperanças serem assassinadas pelo óbvio mundano. Ele atendeu com uma cara de bravo, nunca gostou de surpresas. Ela não sabia o que falar, e seu discurso se esvaiu na visão dele ali na sua frente. Ele a pegou pela mão e colocou-a pra dentro. Fechou a porta e coçando os olhos ofereceu-lhe um leite quente. Ela só disse “não” com a cabeça, ainda muda e não sabendo o que esperar. Ele foi sonolento pra cama desarrumada e deitou. Ela ainda sem saber o que fazer. Ele levantou de novo, pegou-a novamente pela mão e a fez deitar com ele. Abraçou-a e colocou sua perna sobre o quadril dela, como se ela fosse um ursinho de pelúcia, e dormiu em menos de um minuto. Ela ficou lá. Embaixo dele. No quentinho de um amor verdadeiro que ela acabara de aceitar pra sempre.